domingo, 14 de novembro de 2010

Como tive coragem?


Você já fez alguma coisa e depois, anos depois, olhando para trás se pergunta como teve coragem? Pois é, eu também e, pensando bem, acho que todo mundo. Ou não? Não falo de arrepender-se de erro ou pisada de bola. Pelo contrário, falo de um tempo em que  fizemos algo apenas por termos a juventude nos comandando ou talvez certa falta de bom senso e auto-crítica mesmo.
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Faculdade no meio do curso, início dos anos 90. Calças semi-bags sendo deixadas de lado, muito jeans claro reto, muito preto, botinha de bico fino lustrosa, cabelos cacheados e modelados na mousse, batom vermelho escuro e forte, cigarros (sim, acredita?!nem eu...), muito violão, muito canto, rios de poesias lidas e outras criadas. Importações se abrindo cada vez mais, dolar baixo, muito vinho branco (ruim) importado. Jovem não tem paladar, só quer ficar tralalá e boa. Fato. E toda turma tem um infeliz que puxa uma viola pra onde quer que vá. Eu era uma dessas pessoas.

Naquele ano teve um "Show de Calouros" na Faculdade. Hoje, a nova geração tem um teatro lindo e estruturado, todo multimidia e climatizado e um espetáculo organizado chamado Sarau. A gente nem vocabulário tinha para saber falar Sarau...rsrs. Tinhamos um grande pátio cimentado, à beira de um lago grande, uma noite quente com lua e estrelas no céu negro. Caixas de som, microfones, empresta daqui, chora patrocínio dali, regateia o preço da cerva com o depósito e é isso: palco aberto para quem quisesse mostrar algo, se expressar, dizer, ecoar. 

E eu fui com meu violão. Só isso e uma poesia de Quintana. A poesia do Quintana ainda sei de cor e sempre me lembro dela, pois ainda hoje me diz muito (e talvez diga cada vez mais).

Na noite escura, sob o céu que mais amava, vendo na platéia meus amigos que hoje pareceriam crianças, o silêncio se fez.  Quintana nas caixas de som, num palco ladeado por árvores antigas. A jovem de preto, abraçando um violão, avisa:

"Não desças os degraus do sonho 
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma. 
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo..."

Ato contínuo, entra Esquadros que tive a cara de pau de tocar e cantar. Era capaz de pagar por um trecho qualquer de um vídeo disso. E não é por narcisismo. Hoje, a pessoa que me tornei jamais faria isso. O que será que me moveu? Só a disposição e falta de auto-crítica podem explicar a façanha.
ESQUADROS (Composição: Adriana Calcanhoto)
Eu ando pelo mundo
Prestando atenção em cores
Que eu não sei o nome
Cores de Almodóvar
Cores de Frida Kahlo
Cores!
Passeio pelo escuro
Eu presto muita atenção
No que meu irmão ouve
E como uma segunda pele
Um calo, uma casca
Uma cápsula protetora
Ai, Eu quero chegar antes
Prá sinalizar
O estar de cada coisa
Filtrar seus graus...
Eu ando pelo mundo
Divertindo gente
Chorando ao telefone
E vendo doer a fome
Nos meninos que têm fome...
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle...
Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm
Para quê?
As crianças correm
Para onde?
Transito entre dois lados
De um lado
Eu gosto de opostos
Exponho o meu modo
Me mostro
Eu canto para quem?
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle...
Eu ando pelo mundo
E meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço
Meu amor cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado...
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle...
Eu ando pelo mundo
E meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço
Meu amor cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado...
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle...

E apesar da falta de qualidade técnica da coisa toda, não me arrependo. E só poderia ter feito naquela fase eu acho. Tem coisa que tem época certa pra acontecer, mesmo dentro de nós mesmos. 
E acredito que tive uma época em que cantar me ajudava a dizer e pensar coisas, a me relacionar com as pessoas. Eu era mais falante do que sou hoje, justamente por agora predominar em mim uma sede de ouvir (mas ainda sou uma matraca). A música ainda anda comigo, não tiro meu iPod dos ouvidos, mas meu cantar adormeceu. Talvez ele desperte em meus momentos mais viscerais, mais surreais, como quando me despedi de minha avó e, momentos antes de sua partida, me peguei cantarolando dentro de minha mente a mesma ladainha que a ouvia murmurar quando me nanava em seu colo. Não é uma música que eu reconhecça como sendo de algum compositor ou algo assim. Era um la, la, lá que só ouvi dela. Será que trazemos todos uma música própria? Ou ela vai vindo a tona com os anos? Ou será que são os colos macios das avós que são musicais para os netos?

Pra quem não conhece, aqui vai um vídeo com a música. Dentro de mim, continua atual, mas agora deixo que seja trasmitida por melhor intérprete.


 
Não foi bom ter ousado um dia?

Um comentário:

burro chora disse...

Adoro essa música...
Nosso tempo passado é algo que nos faz acreditar que vivemos o de melhor...
Eu me sinto realizada por tudo que fiz...
E relembrar me faz bem...
felicidades