quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O último gentleman

Meu avô João nos deixou ontem. Sem alarde, sem barulho, quase de modo organizado e recolhido, do mesmo modo como viveu, na casa onde viveu a maior parte da vida. 
Nunca vi meu avô de mau humor ou falar de modo ríspido com alguém. Nunca um gesto de grosseria ou truculência. De quantas pessoas você pode dizer isso? Isso não as diminui, somos todos falíveis e humanos, mas sempre me causou admiração a educação e controle de meu avô. É lógico que devia sentir muitas coisas como todos nós, querer esganar alguém de vez em quando, enfim, como qualquer um. Mas seu modo de expressar (ou não) tudo isso ou sua aceitação sobre os limites do mundo e seus próprios, talvez o impedisse de tornar as coisas ainda piores com reações destemperadas. Curiosamente, sua esposa (minha avó) era uma mulher de gênio forte e inquieto, que falava bastante e ria alto, uma gargalhada deliciosa da qual terei saudade enquanto viver. Foram casados uma vida inteira, até que ela se foi primeiro, deixando uma cadeira de balanço vazia ao lado da de meu avô. Nunca vi uma cadeira assumir um tamanho tão grande. E acho que nunca conheci um homem tão respeitoso com a esposa e com a figura feminina. Nunca vi ou ouvi qualquer vulgaridade (nem de brincadeira) que diminuísse a sua ou qualquer outra mulher. Pelo contrário, era um gentleman que tratava com carinho único desde a garotinha feinha e desdentada que fui até sua própria filha (minha mãe). Toda menina deveria ter um avô como esse. Passei horas de minha infância sentada como um gatinho ao seu lado no sofá, cochilando sentada, enquanto ele coçava minhas costinhas pacientemente. Eu poderia pedir-lhe a qualquer momento que coçasse minhas costas, ele nunca dizia não. 
Na minha infância eu tinha uma adoração por cabelos masculinos, não me pergunte a razão. Meu avô deixava que eu fizesse o que quisesse com seus cabelos em processo de rareamento. Enquanto assistia TV, meu avô tinha os cabelos molhados, puxados, esticados, modelados por horas. Nunca deu um pio, pobrezinho, enquanto eu ensaiava passos de cabeleireira maluca. E fazia o mesmo com sua filha, que certa feita prendeu um pente em suas madeixas de um tal modo que uma tesoura foi necessária para solucionar o enrosco. 
Quando ia nos visitar na fazenda onde morávamos, sempre me trazia gingibirra (daí meu vício). Por vezes me trazia folhas imensas de um papel claro, usado em seu armazém para embrulho, e que se transformavam em imensas telas para eu desenhar (não havia papel suficiente no mundo para tantos desenhos que eu trazia dentro de mim). Delícia.
Meu avô tinha um senso de humor irônico, especial, e tiradas que nem todos sacavam. Creio que minha prima Dani, quem mais conviveu com ele, deva ter uma lista imensa em sua mente de suas frases engraçadas e da graça que era assistir seu convívio paciente com minha avó.
Meu avô dobrava seu próprio pijama quando acordava. Minha mãe dizia (não sei se por brincadeira) que ele dobrava até a roupa suja que dispensava. Ele era capaz, quando mais novo, de usar um banheiro e tomar banho etc e sair de lá parecendo que ninguém havia usado o lugar (motivo pelo qual tomei para mim ser esta a marca máxima de fineza de qualquer pessoa). Um mestre na arte de não incomodar o próximo, arte esquecida e sequer aprendida nos dias atuais.  
Este homem, que se foi ontem, foi o responsável pela construção do ideal de avô que carrego em mim, referência de fineza e elegância em qualquer situação. O mundo ficou menos bonito, os sons parecem tão altos hoje, chega a doer o ouvido, não sei ... Talvez já seja sinal da saudade da presença silenciosa de meu avô.

9 comentários:

Patricia disse...

Ju, sinto muito por seu avô. Agora ele estará sendo recebido gentilmente por Deus, os anjos e todos os santos. Que bonito o seu texto, uma bela homenagem a seu avô e a sua família! Abraço, Patrícia.

Eliani disse...

Oi Ju, sinto muito pela partida de seu avô. Ele se foi como sempre viveu, pacientemente e sem alarde! Foi recebido delicadamente, e de onde está cuidará da sua família que continua sua jornada. Abraço.

Ju disse...

Obrigada pelo carinho, Patricia, Eliani. Pessoas como meu avô fazem falta mesmo. Obrigada pelas palavras de carinho.
Beijos

Karina disse...

Querida Ju, agora sei de quem você herdou seu maravilhoso humor e sua generosidade imensa.
Minha solidariedade e amizade com carinho!
Ká e Inky

Anônimo disse...

Ju, querida.

Meus sentimentos por seu avô. Sinto mto, de coração.

Suas palavras me emocionaram. Um dia eu li em alguma lugar que saudade é amor que fica, então, não tenho dúvidas de o amor que ele construiu e todas as boas lembranças que ele deixou serão a garantia da presença dele dentro do seu coração e nos seus dias.
Um beijo. Fique com Deus.

Gih Corrêa disse...

Sinto muito, Jú!
Sabe, seu texto me fez lembrar de uma baixinha, de gênio fortíssimo que fritava ovo de codorna pra mim. É, de codorna...
Minha mãe dizia que ela me estragava, mas se não for pra estragar os netos, qual a função dos avós?
Sei lá, mas os avós deveriam ser eternos!

Força, Jú!!!

Beijão!

Anônimo disse...

Ô Jú, sinto muito... Só posso dizer que seu texto é de uma beleza e delicadeza, que herdadas de seu avô, aliviaram minha solidão aqui em Jundiaí onde tantas vezes fico isoladona num mundo corporativo onde as pessoas tem muito pouco tempo para as palavras.

Beijos

Jô (ainda desperdiçando óvulos)

Ju disse...

Jô, td bem?
Quanta saudade de vc! Como vai por ai?
Que bom que vê meu blog, fico feliz. É um de meus hobbies (quem sabe um dia me profissionalizo?rsrsrs)
Aqui continuo nas salas de aulas, cada hora num canto.
Meu avós se foram em dois anos. Eu guardo muito deles e tenho muito dela e dele em mim. É o que nos consola e nos faz aceitar que a a jornada é de fato muito curta, mesmo qdo termina aos 93!
Apareça sempre,
beijos e abraços apertados
Ju

Letícia disse...

Um dos seus textos mais bonitos. Já li mais de uma vez. Sinto pelo mundo perder um homem tão bom e gentil.
Um beijo!